[MOVIMENTO] 2ª GERAÇÃO MODERNISTA: ROMANCE DE 30



"Retirantes", de Candido Portinari (1944)


Que sensações o quadro de Portinari lhe transmite? Como são as pessoas retratadas e que expressões elas trazem nos rostos? Em que espaço elas se encontram?

Você com certeza percebeu que a tela retrata sofrimento, miséria e a presença da morte, seja por conta das ossadas no chão, seja pelos urubus sobrevoando a paisagem. O nome "retirantes" refere-se às famílias nordestinas que, com a chegada da seca, eram obrigadas a abandonar suas casas e a fugir, geralmente sem destino certo.

Leia agora o trecho inicial do romance "Vidas secas", de Graciliano Ramos:

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MUDANÇA

    Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.   
    Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. 
    Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão. 
    — Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. 
    Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo. 
    A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos
    — Anda, excomungado. 
    O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário — e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. 
    Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés. 
    Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinha Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis
    E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande. 
    (...) 
   Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra. 
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Já no primeiro parágrafo, o narrador introduz diversas informações sobre o espaço e as personagens. Perceba a quantidade de adjetivos presentes no trecho, alguns foram destacados em negrito. Volte ao texto e tente ler, em sequência, apenas os adjetivos destacados.
Os adjetivos chamaram sua atenção de alguma forma? Que sensações eles produzem? Que imagens eles transmitem?

Perceba que a primeira referência às personagens, no livro, é com um adjetivo substantivado: infelizes; como se essa caracterização os definisse. Estabelecendo um paralelo entre as obras, é possível perceber que ambas buscam retratar as complicações provenientes da seca. Está dado o pano de fundo para o Romance de 30.


Os autores do Romance de 30 são contemporâneos aos da Poesia de 30, portanto, o contexto social e histórico é o mesmo. No entanto, a grande marca da produção prosaica da geração de 1930 foi a saída do eixo econômico e cultural do Sudeste, com o surgimento do romance nordestino. Maceió, capital de Alagoas, se tornou o centro dessa produção, pois era lá que moravam seu principais autores: Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. A produção de Jorge Amado teve como base o estado da Bahia e Erico Verissimo, exceção do período, centrou suas histórias no pampas gaúchos.

A intenção dos autores era clara: revelar como uma determinada realidade socioeconômica, no caso, o subdesenvolvimento brasileiro, influenciou a vida dos seres humanos. As obras possuíam um cunho regional e social, retratando problemas como as condições do trabalhador rural, a seca e a miséria. 

  • Marco incial: "A bagaceira", de José Américo de Almeida (1928)
  • Características: registro da realidade socioeconômica na vida cotidiana, caracterização detalhada do espaço e linguagem simples, com utilização de expressões regionais.


# Herança do Realismo e do Naturalismo
  • Realismo: caráter documental; compromisso com a realidade dos fatos; visão analítica.
  • Naturalismo: determinismo; visão fatalista em relação à influência do meio sobre o comportamento do homem. 


 AUTORES & OBRAS 

# Graciliano Ramos


O documentário abaixo conta, de forma bastante desenvolvida, a vida de Graciliano Ramos. O autor foi considerado, pela maior parte da crítica literária, o grande ficcionista da década de 30. Em sua narrativa, ele denuncia a miséria e a violência do Nordeste, utilizando uma linguagem enxuta, direta e com palavras cuidadosamente selecionadas, o que caracteriza seu estilo seco, rude e tenso. Três de seus romances foram escritos em primeira pessoa, todos voltados à análise psicológica da degradação humana expressa nos respectivos narradores-protagonistas. 



I) CAETÉS (1933): João Valério, um intelectual empregado no comércio, narra sua trajetória de derrotas e frustrações, e sente-se responsável pelo suicídio de seu patrão, que suspeitava do adultério de sua esposa com ele.

II) SÃO BERNARDO (1934): A obra apresenta, em tom confessional, o retrato de Paulo Honório, fazendeiro bruto, inculto, amargo e solitário, que decide escrever sua autobiografia aos 50 anos. Para essa tarefa, procura ajuda de conhecidos. Porém, não aceita a linguagem rebuscada utilizada por um jornalista e decide escrever o livro a seu modo (linguagem seca, concisa e objetiva). O fazendeiro possui três obsessões: comprar a fazenda, casar-se e escrever o livro.

III)ANGÚSTIA (1936): Luís da Silva, narra sua tragédia pessoal por fluxo de consciência, através da técnica do monólogo. Ele reconstitui sua trajetória de foram fragmentada, da conturbada infância no interior ao assassinato de seu rival em Maceió. Sentindo-se culpado, Luís não consegue assimilar seus fracassos e isola-se ainda mais depois de cometer o crime. A narração de sua vida é uma forma de realizar sua catarse pessoal e de expiar a culpa. A obra retoma de forma mais densa e mais tensa tudo o que os romances anteriores apresentaram e é, atualmente, uma das leituras obrigatórias da FUVEST.

No link abaixo, você pode ler o artigo do Jornal USP sobre "Angústia" e assistir ao vídeo em que o Prof. Dr. Fabio Cesar Alves comenta o enredo:

Ouça o podcast Marca Texto sobre o livro "Angústia":



IV) VIDAS SECAS (1938): Na obra o autor aprimora as características do Realismo-Naturalismo, que privilegiavam o meio, as circunstâncias externas ao indivíduo, como determinante de seu comportamento; e nos mostra que, em condições sub-humanas de sobrevivência, o homem se animaliza. Escrita em terceira pessoa, a narrativa é a mais significativa do regionalismo nordestino, por seu caráter universal: o retrato da miséria humana, representada pelo vaqueiro Fabiano e sua família. Os retirantes são colocados em diversas situações de opressão - pelo patrão explorador, pelo soldado que abusa do poder e pela própria seca -, o que os condena ao silêncio. 

Assista abaixo ao filme "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos. Que relação se estabelece entre os 12min iniciais do filme e o trecho que você leu do capítulo "Mudança"? 



O autor produziu ainda livros de contos e de memórias, dentre eles dois bastante conhecidos: "Infância" e "Memórias do cárcere".

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# José Lins do Rego


O autor esteve sempre ligado à ideia de renovação literária do Modernismo desde o início de sua produção; seu primeiro livro, "Menino de engenho", apresenta uma linguagem primitiva e popular, autenticamente brasileira. Suas obras mais conhecidas pertencem ao ciclo da cana-de-açúcar. É possível dividir sua produção em mais dois ciclos: do cangaço, misticismo e seca e das obras independentes. Para conhecer um pouco mais sobre a vida e obra do autor, assista ao documentário abaixo:



I) MENINO DE ENGENHO (1932):
Com apenas quatro anos de idade, Carlinhos perde a mãe e vai viver separado do pai, no engenho do avô materno, na zona canavieira, às margens do Rio Paraíba. Lá ele cresce entre a casa-grande e a antiga senzala, com seu avô, senhor do engenho, a tia Maria, a velha Sinhazinha, a Totonha, os primos e toda a gente que vivia e trabalha no engenho Santa Rosa. A história apresenta certa semelhança com a vida do próprio autor, já que esse ficou órfão de mãe muito cedo e foi criado por seu avô materno, que era dono de engenho. Carlos é protagonista também de outros romances desse ciclo da produção de José Lins do Rego; nesta obra, a narrativa gira em torno de sua infância e adolescência. 

II) FOGO MORTO (1943): Conta a história do engenho Santa Fé, desde sua fundação até sua decadência. A expressão nordestina que dá nome ao livro se refere ao engenho que não produz mais. O romance divide-se em três blocos; cada qual trata de um personagem que tem ligação com o engenho, e suas vidas acabam por se entrelaçar. O primeiro bloco é focado em Mestre Amaro, que fabrica selas e mora nas terras do engenho; é frustrado com a vida que leva. A segunda parte narra a decadência do coronel Lula de Holanda. O terceiro fala da figura quixotesca do Capitão Vitorino, pequeno proprietário que luta a favor dos oprimidos. A narrativa é considera a obra prima do autor, por misturar invenção e observação de forma magistral; com forte presença de tradições populares, o autor reconstrói memórias de suas raízes.

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# Rachel de Queiroz


Única voz feminina dentre os autores do Romance de 30, inclusive causou espanto por sua produção tão complexa em um período em que as mulheres se limitavam à produção de sonetos. Foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1977, e um fato interessante sobre ela é que era prima, por parte materna, do escritor José de Alencar. Abaixo você pode assistir a uma entrevista com a autora.


I) O QUINZE (1930): Em 1915, ano da grande seca no sertão do Ceará, Conceição, uma jovem professora que trabalha em Fortaleza, vai passar as férias na fazenda da avó, Mãe Inácia, em Quixadá, onde se envolve emocionalmente com o primo Vicente, rude criador de gado. Paralelamente a essa história de amor, é narrado o drama do vaqueiro Chico Bento, que recebe ordem de se retirar da fazenda com a mulher, a cunhada e quatro filhos menores. Sem dinheiro, só lhe resta seguir a pé pela estrada, com a família, rumo a Fortaleza.

# No link abaixo, assista ao livro trailer da obra.



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# Jorge Amado


O autor conseguiu, com seus romances, traçar um amplo painel do povo brasileiro, usando a Bahia como representação da diversidade étnica  e social brasileira. Com esse painel, apresentou um recorte particular em sua produção literária: o estudo das relações humanas que levaram a constituição do perfil multicultural e multirracial que caracteriza o povo brasileiro. É um dos escritores brasileiros mais conhecidos e mais lidos da literatura brasileira. 
Sua obra passou por muitas fases e algumas merecem destaque, como a que retrata a vida na região cacaueira de Ilhéus, caracterizando a opressão dos trabalhadores rurais em oposição aos grandes coronéis, enriquecidos pelo cultivo do cacau ("ouro negro"). Sua obra "Terras do sem-fim" pertence a essa fase. 
Pertencente aos romances urbanos, a obra "Capitães da Areia" retrata a vida de meninos de rua. A narrativa leva o leitor pelos becos e vielas de Salvador e pelos terreiros de candomblé, escancarando as mazelas da desigualdade social. A obra foi por muitos anos leitura obrigatória da FUVEST. 
A partir da publicação de "Gabriela, cravo e canela", a produção de Jorge Amado se afasta das questões sociais e concentra-se na exploração dos tipos humanos, com foco na temática amorosa. 

Assista abaixo a um vídeo em que Jorge Amado faz uma reflexão sobre o povo e a sociedade brasileira.



Neste outro vídeo, Paloma Amado, filha do autor, mostra a Casa do Rio Vermelho, em Salvador, e outras casas do pai pelo Brasil e pelo mundo: https://www.youtube.com/watch?v=BJ9nPg132OM




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