[MOVIMENTO] MODERNISMO: 3ª GERAÇÃO
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"O sertão é sem lugar. O senhor empurra para
trás, mas, de repente, ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera.
Sertão – se diz – o senhor querendo procurar
nunca não encontra. De repente, por si, quando
a gente não espera, o sertão vem. Viver é muito
perigoso... O diabo não há! É o que digo, se
for... Existe é homem humano. Travessia."
PROSA DE 45
O trecho acima pertence à obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e pode ser um pontapé inicial para compreender a produção dessa nova geração do Modernismo brasileiro. Você com certeza percebeu que o trecho acima fala sobre o sertão e o sertanejo, assim como a maior parte da produção de Guimarães Rosa. Por que então sua obra literária não pertence ao Romance de 30, como a de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outros?
O sertão, na obra de Rosa, assume outros significados; não é mais apenas o espaço físico e territorial que, por um viés determinista, molda os homens e suas ações. O sertão é mais do que isso, é o território, é o próprio homem, seus caminhos, suas travessias, o sertão é a linguagem e o entendimento de mundo.
Visite a exposição on-line "Sertão Mundo":
A escrita roseana rompe com os limites entre o poético e o prosaico, recriando a linguagem, renovando o estilo e vivificando a prosa nacional de uma maneira nunca dantes vista. Em suas narrativas têm
papel importante as aliterações, assonâncias e rimas, invenções de
palavra e deslocamentos sintáticos, figuras de linguagem, efeitos expressivos, a métrica. A linguagem e as marcas de regionalismo, alocadas em determinadas regiões das Minas Gerais, ganham características únicas, num processo de alargamento que permite ao autor a construção de um estilo próprio, distante de tudo que já se havia produzido até então.
Essa inovação no estilo acompanha uma tendência geral da literatura, desencadeada pela busca de novas possibilidades de organização narrativa. Dois autores que já apresentavam esse experimentalismo na prosa internacional eram James Joyce e Virgínia Woolf; ambos se tornariam inspiração para a produção modernista nacional, que teve como destaques da 3ª geração Guimarães Rosa e Clarice Lispector.
Em Ulisses, Joyce reinventa a linguagem e a sintaxe, explorando processos de associação de imagens e recursos verbais para desenvolver o fluxo de consciência das personagens. Woolf também se vale do fluxo de consciência em suas narrativas para lidar com as angústias individuais de personagens multifacetadas.
- Fluxo de consciência: técnica narrativa utilizada para expressar, por meio de um monólogo interior, os vários estados de espírito e as emoções que caracterizam uma personagem. Para isso, o narrador (personagem ou onisciente) apresenta pensamentos sem se preocupar em garantir a articulação lógica entre as ideias: uma série de impressões ganha forma no texto, recriando, em um universo ficcional, o funcionamento da mente humana.
Joyce e Woolf, interessados em tratar da experiência interior da personagens, abrem mão da organização tradicional do romance, atribuindo novos papéis para narrador e personagens e propondo novas relações entre tempo e espaço.
No Brasil, na obra de Guimarães e Clarice, o trabalho com a linguagem se torna o foco, pois é ele que permitirá aos autores as construções e desconstruções necessárias para ampliar as possibilidades de significação do texto literário; em suas produções fica evidente que o narrador não cabe mais na estrutura típica das narrativas em prosa.
As obras desses autores desafiam o leitor a entrar em um mundo próprio, a participar de maneira ativa da construção do sentido e dialogar efetivamente com o texto, mergulhando em um fascinante universo narrativo.
# JOÃO GUIMARÃES ROSA
Assim, o escritor vai envolvendo o leitor em uma imensa rede de histórias que abrem espaço para a reflexão sobre as grandes questões universais que atormentam o ser humano. Essas questões dizem respeito a temas como o bem e o mal, a sanidade e a loucura, o certo e o errado, a vida e a morte, o acaso e o destino.
- Grande Sertão: Veredas (1956) - Riobaldo, narrador protagonista, cresce na fazenda do "padrinho" (na verdade é seu pai, mas não havia reconhecido a paternidade). Essa condição lhe garante certa educação formal; sua educação real, no entanto, se dá quando entra para um bando de jagunços e inicia sua longa viagem pelo sertão das Gerais. Sua travessia é contada, em um monólogo que toma em torno de 600 páginas, sem divisão de capítulos, a um interlocutor identificado pelo sertanejo apenas como "senhor". A narrativa se situa geograficamente em partes do sul da Bahia e Goiás e, principalmente, no interior de Minas Gerais; mas, através da narrativa, o sertão se expande, perde suas fronteiras físicas e passa a simbolizar a busca pelas respostas para grandes questões humanas. Na trajetória de Riobaldo, Rosa apresenta toda a amplitude do homem (individual e coletivo), revelando seus avessos, suas angústias, seus momentos heroicos e covardes. A travessia de Riobaldo é a travessia de todos nós.
Assista abaixo a uma entrevista com João Guimarães Rosa em que ele fala sobre a obra Grande Sertão: Veredas.
- Campo geral (1956) - Publicado, inicialmente, como parte do volume Corpo de Baile, “Campo Geral” passa a pertencer a Manuelzão e Miguilim, um dos três livros em que se desdobrou Corpo de Baile, em 1960. Com o foco narrativo em terceira pessoa, esta história centraliza-se num menino de oito anos. Através da percepção deste menino é que vamos aprendendo, durante a leitura, os detalhes das coisas, a magia dos pequenos fatos, a solene importância dos brinquedos, o susto com a crueldade do mundo, o medo da morte, a preocupação religiosa. Defrontamo-nos assim com o universo infantil, cuja subjetividade é desvendada pelo narrador onisciente, assim como as outras personagens, os animais e a paisagem. Tudo nos é revelado pela óptica de Miguilim através da onisciência do narrador. Indeciso entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, o menino faz uma travessia ao longo da narrativa e leva o leitor em sua companhia, em direção às veredas distantes do Mutum, lugar que considera bonito sem ter certeza, mas que a mãe acha feio. A ingenuidade, a delicadeza, a sensibilidade, a magia de uma criança, em seu universo também mágico, e o sertão permitem por meio do conto um mergulho no universo mítico e poético de Guimarães Rosa: encantado como a infância de Miguilim.
Para ler a obra "Campo geral", clique aqui.
No link abaixo, você pode ler o artigo do Jornal da USP sobre a obra Campo geral, que está na lista de leituras obrigatórias da FUVEST deste ano.
Abaixo há três artigos interessantes que analisam a obra, basta clicar no título para abri-los:
1) O narrador epilírico de "Campo geral", de Ronaldes de Melo e Souza.
2) Miguilim: suas estórias e sua estória, de Josmari Correia Dias Felicio.
3) O corpo e a palavra: uma leitura de "Campo Geral", de Erich Soares Nogueira.
Para realizar exercícios referentes à obra "Campo geral", clique aqui.
https://professora-anapotenza.blogspot.com/2020/10/conto-hora-e-vez-de-augusto-matraga-de.html
Assista abaixo a uma (rara) entrevista com Clarice Lispector na TV Cultura:
(Da esquerda para a direita: Drummond, Rosa e Bandeira)
# CLARICE LISPECTOR
Clarice Lispector apresenta profundo domínio sobre a técnica do fluxo de consciência, o que se torna sua marca registrada. A experimentação literária, em sua produção, rompe com a estrutura tradicional da narrativa. Em "A paixão segundo G.H." (1964), por exemplo, o início se dá por uma sequência de travessões:
"------ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu."
O leitor é lançado, sem qualquer aviso, nos confusos pensamentos da personagem. Não se sabe o que foi que ela viveu, por que essa experiência teve um impacto tão grande em sua vida. Essa apresentação de uma série de impressões, de reações, reflexões e sentimentos configura o fluxo de consciência. Isso permite que o leitor acompanhe de perto as transformações pelas quais passam as personagens no processo de descoberta interior.
Antes de seguir a leitura, assista ao vídeo da Profª Yudith Rosenbaum - especialista na obra da autora - sobre a experiência de ler Clarice Lispector.
Outras duas especialistas que analisam a obra da autora, também na página da Casa do Saber, são a crítica literária Noemi Jaffe e a psicanalista Maria Homem. Vale a pena assistir ao dois, são análises breves e excelentes!
"Perto do coração selvagem" (1943) foi sua primeira publicação e a inseriu no contexto das letras nacionais; uma voz feminina em um cenário com pouca abertura às mulheres. Inicialmente, a obra não foi bem aceita pela crítica, desnorteada pela força da narrativa intimista de Clarice. A literatura da autora busca a compreensão da consciência individual, marcada pela grande introspecção das personagens. O momento preciso em que a personagem toma consciência da própria realidade pode ser desencadeado por situações cotidianas, ordinárias, a princípio. Esse processo individual recebe o nome de epifania.
As narrativas da escritora tratam, principalmente, de alguns temas: o a condição e o universo femininos, a relação com o outro, a hipocrisia dos papéis definidos socialmente e a busca pelo eu.
(Imagem criada por Mariana Valente, neta de Clarice, para o doodle do Google, em 2018)
- Laços de família (1960) - A obra é uma coletânea de contos que têm como temática principal os laços familiares. As personagens são pessoas comuns que se sentem esmagadas pela banalidade da existência; as relações familiares impõem sobre elas um aprisionamento que dificulta sua busca por libertação e sua descoberta individual. Os dois processos se fundem, em uma relação entre o "eu" e o "mundo", no rompimento com a rotina, que promove a iluminação da consciência do indivíduo e culmina na epifania, ao sabor da escrita clariciana.
Você pode ler a obra integralmente clicando no link abaixo:
- A hora da estrela (1977) - No início do livro, o narrador Rodrigo S.M. apresenta-se ao leitor e define seu objetivo literário: narrar a história de uma nordestina, chamada Macabéa, que morava no Rio de Janeiro, vinda de Alagoas. A moça, descrita como completamente inexpressiva, dividia um quarto de pensão com mais quatro colegas e trabalhava como datilógrafa. Apaixona-se por Olímpico, também nordestino, é abandonada por ele e morre atropelada, depois de uma visita a uma cartomante para saber o que o futuro lhe reserva. Ao primeiro plano, relato da vida de Macabéa e suas misérias, interliga-se um segundo plano, constitutivo da narrativa: os questionamentos desse narrador masculino (o primeiro na obra da escritora) sobre a sua maneira de narrar. Os motivos que o levam a contar a história da jovem, sua dificuldade em compreender a própria personagem, pertencente a uma camada social muito diferente da dele, e suas reflexões sobre a existência constituem um terceiro plano narrativo.
Você pode ler a obra integralmente clicando no link abaixo:
Ouça, abaixo, um comentário do Prof. Ricardo Alexino Ferreira (ECA-USP) sobre a "A hora da estrela".
Este ano, a autora completaria 100 anos, por isso diversas homenagens têm sido feitas ao seu centenário. Veja algumas delas abaixo!
Especial "Clarice Lispector - 100 anos", da TV Cultura.
Exposição "Clarices" homenageia a escrito no ME Ateliê da Fotografia, em Salvador.
Reportagem do El País Brasil sobre Clarice e sua escrita.
Site sobre a autora e sua produção criado pelo IMS; todos os anos o instituto promove um evento chamado "A hora de Clarice".
POESIA DE 45
A preocupação com o resgate da forma poética fez com que o projeto literário da poesia de 1945 fosse definido pela construção de uma "nova objetividade" em relação à criação literária.
Por conta da preocupação com a forma, muitos poetas dessa geração foram apontados como novos parnasianos, mas há profundas diferenças entre eles. Os parnasianos investiam num rebuscamento formal sem pretender, com isso, criar novos sentidos para o texto. A arte pela arte, a perfeição formal, a imparcialidade diante do objeto do poema eram seus objetivos. Os poetas de 45, porém, desejavam que perfeição formal expressasse uma observação crítica da realidade.
A ampliação do circuito de produção cultural brasileira, iniciado com os romances de 30, alcançou a poesia. Em 1941, alguns poetas ainda desconhecidos, como João Cabral de Melo Neto, despontaram em um congresso de poesia realizado em Recife. Em 1942, foi a vez de Fortaleza acolher o 1º Congresso de Poesia do Ceará, confirmando o alargamento dos horizontes literários.
O cuidado formal que define o projeto literário de 1945 pode ser percebido na preocupação em escolher a palavra exata, muitas vezes desdobrada em metáforas que ampliam o sentido do poema para campos semânticos inesperados.
# JOÃO CABRAL DE MELO NETO
João Cabral é um poeta cerebral. O planejamento do poema, a reflexão sobre o próprio processo de composição são a base do seu fazer literário. Sua preocupação em tentar extrair a máxima significação de cada palavra e a qualidade literária de seus poemas foram também os fatores que fizeram com que ele alcançasse uma importância muito grande para a literatura brasileira no século XX.
A linguagem que utiliza aparece despida de ornamentos; os críticos o definiram como poeta não lírico, por conta da linguagem utilizada, por não falar de sentimentos e não abordar estados de espírito.
As imagens da realidade, na obra de João Cabral, são reduzidas à essência. As palavras estão sempre dispostas em uma organização rigorosa e constroem uma série de imagens que transformam o poema em "máquina" que produz significados. Os metapoemas - poemas que falam sobre o próprio fazer poético - são frequentes em sua produção literária, pois esse era um tema caro ao autor.
A obra mais conhecida de João Cabral de Melo neto é "Morte e vida severina"; curiosamente, esse auto de Natal pernambucano, feito sob encomenda, era a obra de que ele menos gostava. Convidado a acompanhar Severino em sua longa caminhada do sertão até o litoral, o leitor testemunha a miséria e a morte a cada parada. O retirante chega ao Recife com uma dúvida: será que vale a pena uma pessoa como ele permanecer viva, tendo que enfrentar tanta dificuldade? No momento em que faz essa pergunta a José, um carpinteiro com que conversava no cais do rio Capibaribe, é interrompido por uma mulher que vem avisar a José sobre o nascimento de seu filho. Severino testemunha, então, a solidariedade dos outros habitantes do manguezal, dispostos a dividir o pouco que têm com o recém-nascido. Severino compreende, então, que a própria vida deu a resposta que ele esperava: mesmo sofrida, a vida merece ser vivida.
Assista abaixo à animação que apresenta o texto integral de "Morte e vida severina" (2010), do diretor Afonso Serpa.
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