[OBRA] DOM CASMURRO, DE MACHADO DE ASSIS

 


   "Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confissão de criança, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto.
   (...) Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se e, depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos outros...
   (...) Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham..."

(Capítulo XIV - A inscrição)


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O trecho acima pertence a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, um dos romances realistas do autor. Apesar de ter um vasta produção e de ter se aventurado em diversos gêneros textuais, é o romance realista que consagra Machado como um dos maiores autores da literatura brasileira. Atente-se, abaixo, a alguns pontos da produção machadiana.



RUPTURA COM A NARRATIVA LINEAR

Os fatos e as ações não seguem um fio lógico ou cronológico; obedecem a um ordenamento interior, são relatados à medida que afloram à consciência ou à memória do narrador.


ORGANIZAÇÃO METALINGUÍSTICA DO DISCURSO

É comum, na ficção machadiana, que o narrador interrompa a narrativa para, com saborosa e bem-humorada bisbilhotice, comentar com o leitor a própria escritura do romance, fazendo-o participar de sua construção; ou ainda, para dialogar sobre uma personagem, refletir sobre um episódio do enredo ou tecer suas digressões sobre os mais variados assuntos.

O narrador machadiano assume a posição de quem escreve e ao mesmo tempo se vê escrevendo. Esses comentários à margem da narração constituem o principal interesse, pois neles está a mensagem artística do escritor.


UNIVERSALISMO

Machado situou na sociedade carioca do século XIX os grandes temas de sua obra. O seu interesse jamais recaiu sobre o típico, o pitoresco, a cor local, o exótico, tão ao gosto dos românticos. Buscou, na sociedade do seu tempo, o universal, os grandes temas filosóficos: a essência e a aparência; o caráter relativo da moral humana; as convenções sociais e os impulsos interiores; a normalidade e a loucura; o acaso, o ciúme, a irracionalidade, a usura, a crueldade.

A pobreza de descrições, a quase ausência da paisagem são ainda desdobramentos dessa concentração na análise psicológica e na reflexão filosófica. As tramas dos romances machadianos poderiam, sem grandes prejuízos à narrativa, ser transplantadas para qualquer época e qualquer cidade. Não obstante, sua penetração nos recessos da sociedade brasileira da época faz dele um crítico social extraordinário. Este aspecto de sua obra tem sido mais e mais valorizado pela crítica.


INFLUÊNCIAS

Machado de Assis esteve acima dos modismos da época. Enquanto Gustave Flaubert, pai do Realismo, defendia a superioridade do “romance que se narra a si mesmo", ocultando por completo a figura do narrador, Machado subverte essa regra, intrometendo-se na narrativa, fazendo com que o leitor identifique sempre, por trás e acima do narrador, a existência do escritor Machado de Assis.

Autodidata, Machado adquiriu sólida formação clássica: Shakespeare, Dante Alighieri, Cervantes e Goethe eram suas leituras frequentes. Mas os modelos que seguiu mais de perto foram os do século XVIII: Voltaire, com sua ironia cortante, além do refinado sense of humor dos autores ingleses Sterne e Swift.


PESSIMISMO

O narrador machadiano revela sempre uma visão desencantada da vida e do homem. Não acredita nos valores do seu tempo e, a rigor, não acredita em nenhum valor. Mais do que pessimista ou negativista, sua postura é nihilista (nihil = nada). O desmascaramento do cinismo e da hipocrisia, do egoísmo e do interesse, que se camuflam sob as convenções sociais, é o móvel de grande parte da
ficção machadiana.

O capítulo final de Memórias Póstumas, o antológico “Das Negativas", é exemplo cabal do pessimismo machadiano:

Capítulo CLX

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.


IRONIA

A forma de revolta na obra de Machado era o rir, quase sempre um riso amargo que exteriorizava o desencanto e o desalento ante a miséria física e moral de suas personagens. Observe o texto:

... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas.

Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear a tragédia humana.


ANÁLISE PSICOLÓGICA E DENSIDADE NARRATIVA

A ação e o enredo perdem a importância para a caracterização das personagens.

Os acontecimentos exteriores são considerados somente na medida em que revelam o interior, os motivos profundos da ação, que Machado devassa e apresenta detalhadamente. Daí a narrativa lenta, pois o menor detalhe, o menor gesto são significativos na composição do quadro psicológico; nada é desprovido de interesse. Esta fixação pelo pormenor é o que se denomina “microrrealismo".

É a ausência de ação, aliada à densidade psicológica e filosófica, que afasta o adolescente do texto machadiano, que supõe um leitor “maduro". É corrente a impressão de que os romances de Machado são muito “parados", impressão fundada no hábito de leitura de obras centradas na ação exterior: folhetins, romances de aventura, policiais, narrativas de complicação sentimental, à maneira dos filmes de sucesso comercial, das novelas da TV e dos best sellers americanos.

Machado é sempre um convite à reflexão, e um caminho necessário à formação de um gosto literário mais denso, hoje infelizmente massacrado pela subliteratura e pelos “artur halleys" e “irvings wallaces" da vida.


ESTILO "ENXUTO" 

Machado prima pelo equilíbrio, pela disciplina clássica, pela correção gramatical, pela concisão e pela economia vocabular. Ao contrário da nossa congênita tendência ao uso imoderado do adjetivo e do advérbio, tão ao gosto de Castro Alves, de Alencar, de Rui Barbosa etc., Machado é parcimonioso, sóbrio, quase “britânico". Não é, contudo, uma linguagem simétrica e mecânica, porém medida pelo seu ritmo interior, do qual deriva o segredo da unidade da obra.


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